A casa de família do arquiteto Miguel Raposo, em Coruche, é um testemunho rico da sua história e legado. Uma visita guiada pelos vários séculos, as suas formas de viver e habitar, num dia passado na vila ribatejana.
Texto: Isabel Figueiredo / Fotografia: António Moutinho
A entrada desta casa do século XVII — assim o atesta o primeiro documento na posse da família, que se refere à sua construção como datando de meados de 1600 — faz-se por uma rua estreita da vila de Coruche e, não fora a sua fachada, que deixa antever a riqueza de um edifício histórico, poucos adivinhariam o que para lá daquela porta se esconde. O hall de entrada, com teto baixo ornamentado por vigas de grossos troncos de madeira escura, exibe paredes revestidas a azulejo, mobiliário e faiança de época. A abertura em arco, na parede em frente, orienta-nos em direção à escadaria de acesso ao primeiro andar, mas também às dependências do rés-do-chão, nomeadamente a sala de leitura, com lareira e acesso ao pátio, e quatro quartos, usados sobretudo quando a casa se enche de convidados. O arquiteto Miguel Raposo, faz-nos a visita guiada ao solar da família.
Conforme lidera a visita, nesta casa de família que é também o seu refúgio de férias e de fim de semana, Miguel Raposo vai apontando, aqui e ali, peças de enorme riqueza artesanal e histórica, enquanto nos relata uma boa parte da sua história. Uma história feita de gerações e de mudanças, de experiências e momentos.
“A casa nem sempre foi assim, como a vemos hoje”, diz-nos. “Ao longo de todos estes séculos, sucederam-se alterações, tanto do ponto de vista arquitetónico como do ponto de vista funcional e social”. E explica: “A forma de viver do século 17 não foi a mesma do século 18, que por sua vez foi diferente da forma como se viveu no século 19, mas também no século 20 e por aí fora…”. A última obra ali levada a cabo data do ano em que o avô se casou. “Nessa época”, conta, “foram feitas novas alterações, ao nível das compartimentações e demais opções estéticas, e foi essa casa que encontrámos, e que decidimos reabilitar na sua totalidade, no ano 2000”.
Contudo, todas as modificações de que o edifício foi alvo não lhe retiraram o charme nem a importância histórica. O passado e as várias formas de viver ao longo dos séculos estão bem presentes, “como resultado dessas alterações. E esse foi um exercício que nós tivemos de fazer quando, há duas décadas, abraçámos — e continuamos a abraçar — a sua reabilitação total, porque pese embora tratar-se de uma casa típica, com a sua raiz no século 17, as opções estéticas, entretanto efetuadas e o evoluir dos tempos e das formas de habitar aproximam-na mais, hoje, dos actuais padrões de vivência de uma casa.
À semelhança de muitos edifícios nobres daquela época, também este exibia quatro ou cinco grandes divisões, com tetos de masseira ricamente pintados, que serviam distintas funções: “Na mesma divisão decorriam, ao longo do dia, várias atividades”, revela-nos o arquiteto. “Desde comer, dormir ou organizar papeladas relacionadas com as atividades económicas.” E conforme esta forma de viver, os espaços foram sendo adaptados, tendo-se constatado que na sua compartimentação, alguns daqueles tetos ficaram escondidos, apenas revelados há 25 anos, “como é o caso dos encontrados no sótão, porque, justamente, houve necessidade de atribuir-lhe uma nova forma de viver.”
A grande obra de reabilitação da casa foi, nesse sentido, o estabelecer de uma ponte com o seu legado. “Pensar no que fica e no que modificamos, sem descurar o seu passado, foi um exercício que tivemos de fazer. Por um lado, porque havia que pensar na forma de habitar dos dias de hoje e, por outro, porque era desejado, tanto quanto possível, devolver o original à atualidade. Quando decidimos avançar com a reconversão da casa, a nossa preocupação prendia-se com a evidente necessidade de adaptá-la aos dias de hoje, respeitando o mais possível as suas origens, devolvendo-lhe a sua traça original, mesmo estando conscientes da existência de vários estilos artísticos e arquitetónicos. Havia que tomar decisões e fazer opções, diria, quase divisão a divisão.”
As distintas correntes estéticas foram abordadas por uma equipa de profissionais que soube lidar com as várias narrativas e, como confirma o arquiteto Miguel Raposo, “correu muito bem, em termos de trabalho de fundo, sobretudo quando nos referimos a este tipo de questões mais técnicas”. Engenheiros e arquitetos, técnicos da área da conservação do património, do restauro de pinturas e azulejos, foram chamados a intervir, numa empreitada delicada, que continua até à data. “Tem sido um trabalho grande, que não termina, porque quando se tem uma casa deste tipo, o restauro e a conservação são uma constante, é um trabalho que vai sendo feito — e que também implica uma despesa avultada”. Além disso, o facto de o edifício ter sido intervencionado em várias épocas, obrigou a um olhar mais profundo sobre o existente e a tomar opções, no decorrer do restauro e da remodelação, há 25 anos, ao serem postos a descoberto exemplos de outros estilos anteriores àquela data. “A sala de jantar, por exemplo, já exibiu um estilo ao gosto de finais do ano 1800, mas a sua origem é outra”, revela-nos. “Escondido, estava um teto do século 17”.
A sua relação com a casa, desde criança, foi muito importante na tomada de determinadas opções. “Sempre estive consciente daquilo que estava escondido, do que era e de como teria sido e isso fascinava-me!”. E aponta, como exemplo, as portas, numa das paredes da casa de jantar, no primeiro piso, que escondem um armário para arrumação de loiças, mas que comunicavam, no passado, com as divisões adjacentes.
De entre o conjunto de decisões, nomeadamente ao nível da decoração, destacamos a forma ponderada, e delicada, com que foram escolhidos os tecidos que vestem hoje sofás e poltronas, sobretudo nas salas do primeiro andar. “Muitos destes tecidos foram selecionados com base em mostruários, que seriam da minha avó, encontrados no processo da reconversão”. Agrafadas a cartões, ainda com as referências, estas amostras de tecidos teriam sido enviadas por correio para Lisboa e hoje são várias as sedas e adamascados, ricamente decorados, que se combinam nas salas do primeiro andar. Estes tecidos, mas também as tapeçarias de chão e de parede, lustres, mobiliário ou peças de cerâmicas e obras de arte confirmam a sua sensibilidade e preocupação com o respeito pela história e o legado. As memórias estão vivas em cada peça. Em cada um dos espaços da casa, dentro e fora dela.
É neste piso superior que se alojam, além das salas de estar, de leitura ou de refeições,quatro quartos e três casas de banho, bem como a ampla cozinha, apoiada por um espaço de refeições — aqui, a combinação dos azulejos e do mobiliário azul, a seleção de peças deixadas à vista e a luz natural conferem-lhe um ambiente com tanto de funcional como de acolhedor. Pela porta de vidro da cozinha, acede-se a um pequeno terraço e às escadas que conduzem ao pátio, em baixo, onde um tanque faz as vezes de piscina e nos mergulha, imediatamente, em cenas imaginadas de finais de tarde tranquilos. O próprio som da água que brota da escultura, na parede da piscina, acentua a magia do lugar. Do terraço da cozinha, avistamos um outro, bastante mais generoso, que pode ser acedido pela sala de jantar ou pelo pátio, por via das escadas de pedra. A mesa de refeições ao ar livre, uma outra, de apoio, e as poltronas convidam a estender os almoços ou jantares a este espaço exterior.
Descendo as escadas, ao fundo do terraço, e cruzando o pátio, encontramo-nos numa outra parte da casa, acedida pelo alpendre, em estilo mediterrânico , com a sua arcada , cadeiras e poltronas de materiais naturais e as cortinas brancas, leves, que ondulam com a brisa suave. Também nesta ala, a pedra, os azulejos de época e demais características arquitetónicas assinaláveis remetem-nos para outros tempos. Uma viagem ao passado, numa vila pitoresca, nesta casa de família rica em memórias e em vivências, às quais importa dar continuidade.